Temos assistido aos desdobramentos dos crimes que ceifaram as vidas do cartunista Glauco, da Folha de S. Paulo, e de seu filho Raoni. As primeiras notícias diziam que se tratava de uma tentativa de assalto ou de sequestro. Depois, tudo mudou: o assassino seria Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, frequentador ou ex-frequentador da seita do Santo Daime, da qual Glauco era um dos principais líderes. O rapaz era conhecido da família e da comunidade do Céu de Maria, lugar fundado por Glauco para os rituais com o chá alucinógeno chamado "ayahuasca".
De assaltante ou sequestrador, o indivíduo passou a ser apresentado como alguém que apareceu batendo nos familiares de Glauco e no próprio cartunista, e lhe pedindo que fosse até São Paulo para convencer sua mãe de que era Jesus Cristo. A história não está muito clara, mas dá conta de que, ao chegar da faculdade, Raoni discutiu com Carlos Eduardo ao ver seu pai ensanguentado, e os tiros foram disparados, dez ao todo. O rapaz fugiu num carro com outro jovem. Havia várias testemunhas.
Há muitas coisas que eu gostaria de comentar, a começar pelo tratamento que a imprensa vem dando ao caso: como lembra Reinaldo Azevedo, da "Veja", no texto Daime, inconsistências e absurdos, tem-se classificado o Santo Daime como "doutrina cristã", coisa que ele não é. Seu fundador, um seringueiro chamado Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, misturou cristianismo, espiritismo e xamanismo, a partir de seu contato com um xamã peruano. Assim nasceu o Santo Daime, com um discurso de que o chá da ayahuasca levaria à autoconsciência, ao encontro com Deus, à espiritualidade. Mas, só porque ele chama sua doutrina de Cristianismo, a imprensa não precisa fazer essa afirmação peremptória. E não é de Cristianismo que se fala porque, entre outras coisas, a Bíblia reprova a pharmakeia, ou seja, a prática de feitiçaria em suas diversas formas, e especialmente o uso de plantas com efeitos "espirituais" (qualquer semelhança com "fármacos", ou "drogas", não é mera coincidência).
Outra coisa que me incomoda: jornalistas têm chamado a comunidade "Céu de Maria" de "igreja", palavra eminentemente neotestamentária, que não pode ser dissociada de seu conteúdo cristão: igreja, do grego ekkesia, é a assembleia tirada para fora. Numa alusão às assembleias gregas, chamadas para a praça com o objetivo de discutir temas civis ou políticos, a ekklesia é o nome que se dá ao povo de Deus, aos que foram chamados para fora do mundo, para fora das trevas, para fora do reino do Inimigo, a fim de adentrarem ao Reino de Deus. Curiosamente, os mesmos jornalistas não hesitam em chamar igrejas evangélicas de "seitas".
Dentro disso, algo me chamou a atenção: numa reportagem no Jornal Hoje, depois da morte de Glauco e de Raoni, a repórter, falando sobre o Santo Daime, disse que "alguns médicos consideram a bebida alucinógena". Não, senhora, não são "alguns médicos". É a medicina mesmo, a ciência.
A ayahuasca é uma bebida alucinógena, usada por índios amazônicos, e composta pelo cozimento de um cipó e da folha de uma planta, a "rainha". O cipó tem propriedades alucinógenas, por causa do componente DMT, que, conforme reportagem de "Veja", em 1996, com o título A seita do barato - a qual cito abaixo - não pode ser absorvido pelo organismo. O chá só tem efeito alucinógeno porque a planta "rainha" neutraliza a ação da enzima que impede a absorção. Por isso, há a alteração do estado mental, e a pessoa chega a "miragens", o mesmo que as "viagens" das pessoas usuárias de drogas.
Na referida reportagem de "Veja", li histórias sobre suicídios, um assassinato e até um esquartejamento envolvendo pessoas "daimistas" - consumidoras do chá. Ao lado do aspecto um tanto romântico da seita - pela participação, no passado, de artistas como Lucélia Santos, Maitê Proença, Ney Matogrosso e Carlos Augusto Strazzer, e da origem amazônica, há relatos macabros de crimes cometidos por pessoas que, de repente, saíram de si. Também há a notícia de que as comunidades daimistas exercem coerção sobre pessoas jovens, tirando-as de suas famílias, muitas delas ricas ou de classe média.
Numa dessas histórias, aparece o cartunista Glauco, na década de 1990. Uma moça chamada Verônica, cuja mãe lutava para ter sua guarda, teria obtido a ajuda de Glauco para ir à Colônia 5000, um dos redutos do Santo Daime. A moça foi e não mais voltou (pelo menos até a data da reportagem de "Veja"), segundo o relato de sua mãe, Alicia Castilla, ex-daimista.
Por questões de liberdade religiosa, o Estado Brasileiro não proscreveu o uso da ayahuasca, desde que no contexto dos rituais religiosos.
A Resolução nº 05/2004, do Conselho Nacional Antidrogas (CONAD), preceitua que cabe aos pais, e somente a eles, a decisão sobre dar ou não ayahuasca a seus filhos menores. Esse poder de decisão foi entregue também às grávidas.
As crianças recebem o chá desde a tenra idade, e não há controle sobre quem tem problemas mentais ou não - muito menos sobre interações medicamentosas, como exemplificado naquela clássica pergunta dos médicos: "Você toma algum remédio"?, justamente para evitar misturas indevidas. E, cá para nós, não é difícil haver pessoas com problemas mentais sem saber que os têm, principalmente num país em que psiquiatra é "coisa de doido".
Creio que a abordagem desse caso deve ser a mais imparcial possível, como em todos os casos. Nisso mais uma vez concordo com Reinaldo Azevedo, segundo o qual o advogado da família não falou de início que se tratava de alguém conhecido. Se as informações não forem as mais precisas, os crimes podem ficar sem apuração eficaz, notadamente quanto às circunstâncias, à relação do autor com as vítimas e à motivação dos crimes - elementos essenciais para a reconstrução da cena e a dosagem da pena ou estabelecimento da medida de segurança, para a hipótese de se tratar de um surto ou doença qualquer que impediu o rapaz de entender o que fazia e de se conduzir de acordo com esse entendimento.
A ordem jurídica brasileira permite o uso religioso da ayahuasca em nome da liberdade de religião e em defesa da cultura indígena.
O que diz a Lei nº 11.343/2006, que estabelece a Política Nacional de Combate às Drogas?
"Art. 2º. Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso".
Hoje, com base em decisões do CONAD e nos estudos produzidos pela Câmara de Assessoramento Técnico- Científico (CATC) e pelo Grupo Multidisciplinar de Trabalho, que contou com a representação de entidades adeptas do chá, o uso religioso da ayahuasca é permitido dentro de algumas balizas, dentre as quais uma das mais difíceis é, na minha concepção, proibir o tráfico e selecionar criteriosamente as pessoas que podem ingerir o chá.
Isso se dá em nome da liberdade religiosa e do respeito às culturas indígenas. Todavia, quando se trata de saúde e de ordem social, precisamos nos preocupar. Esse caso do cartunista Glauco talvez abra os olhos da sociedade - não sou tão otimista assim - para os problemas relacionados ao uso de substâncias psicotrópicas, e da necessidade de um controle social que dependa de debates mais apurados do que os entabulados até agora.
Achei o texto de Veja (A seita do barato) em:
O texto de Reinaldo Azevedo (Daime, inconsistências e absurdos) pode ser encontrado em:
Resolução nº 05, de 2004, do CONAD:
http://www.ayahuascabrasil.org/index.php?op=legis100