domingo, 30 de março de 2014

50 anos do Golpe de 1964: Cada lado tem sua história

De acordo com a versão da esquerda brasileira, o que aconteceu no dia 31 de março de 1964 foi um Golpe de Estado militar com apoio da burguesia, contra os interesses  dos trabalhadores, dos camponeses, dos pobres em geral e do Brasil. Para os esquerdistas, o Regime Militar não passou de uma reação à proposta das Reformas de Base, do Governo do presidente João Goulart, agora reinventado como político habilidoso que conseguira em 1961 a saída parlamentarista e, já em 1963, obtivera a vitória do presidencialismo por meio de plebiscito. A esquerda construiu a ideia de que lutava por democracia, e de que as guerrilhas só começaram depois do endurecimento do Regime.
Segundo a versão militarista, o que ocorreu em 31 de março de 1964 foi uma Revolução ou Contrarrevolução ante o iminente Golpe comunista a ser desferido por um fraco e influenciável João Goulart, que, desprovido de convicções próprias, era conduzido por figuras esquerdistas como seu irresponsável cunhado Leonel Brizola. Os adeptos dessa linha dizem que os esquerdistas não eram democratas; que Castello Branco assumiu para governar provisoriamente, até dezembro de 1966; que o povo apoiou a Revolução; que o endurecimento somente se deu depois de eventos como o atentado no Aeroporto de Guararapes, em Pernambuco, onde morreram um jornalista e um militar. O AI-5, de 13 de dezembro de 1968, teria sido uma resposta à violência terrorista do Partido Comunista Brasileiro (PCB), do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), da Ação Libertadora Nacional (ALN)  - de Carlos Mariguella - e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de Carlos Lamarca, entre outros.
Não se costuma contar essa história cinquentenária sem paixões. Há, como alerta Rodrigo Constantino, um claro maniqueísmo. É necessário que estudemos 1964 com sinceridade e honestidade intelectual.
Por outro lado, sinto admitir que a Comissão Nacional da Verdade surgiu, não com o propósito de revelar fatos históricos, mas de reescrever o passado a partir de uma perspectiva unilateral, o que se percebe na maneira como são tratados os militares chamados a depor. Pergunto por que razão os ex-terroristas não são sequer considerados nessa condição, mas recebem bolsas e pensões do Estado como se fossem vítimas comuns.
Outros querem afastar a Lei da Anistia, de 1979, quando se sabe que ela foi, no dizer do ex-Ministro do STF Eros Grau, uma "lei-medida", necessária naquele momento difícil de transição democrática.
Assim, em vez de contar a história de forma realista, percebe-se uma atitude antijurídica e não científica.
Há, porém, exceções, como o excelente livro do historiador Marco Antonio Villa, Ditadura à brasileira.
O Brasil, cujo povo sequer conhece o que aconteceu nos últimos quinze anos - ou em quem votou na última eleição - não deve se dar ao luxo de se render a versões eivadas de intenções políticas para um capítulo tão importante de sua História.
 

domingo, 2 de março de 2014

Sobre linchamentos


Há algumas semanas fez-se grande algazarra em torno de uma fala da jornalista Rachel Sheherazade a respeito do episódio em que um jovem ladrão foi amarrado a um poste. Desde aquele dia a imprensa tem noticiado outros justiçamentos, como a do rapaz, lá no Piauí,  torturado sobre um formigueiro.
Linchamentos são mais comuns do que se imagina, principalmente em lugares muito violentos e politicamente deficientes. Creio, porém, haver uma escalada, sim, dos justiçamentos por causa da impunidade, do aumento da criminalidade devido ao crack e da morosidade da Justiça.
NÃO justifico esses acontecimentos, mas tão somente recordo uma lição elementar de Teoria Geral do Processo, segundo a qual a jurisdição se desenvolveu para substituir as partes em conflito, sendo o processo o meio para alcançar a paz social com a intervenção da figura do juiz, representante do Estado.
O calouro no estudo das Ciências Jurídicas logo depara com o conceito de "justiça privada" ou "vingança privada", a famosa "justiça com as próprias mãos", que existe desde que o mundo é mundo. Em tempos primitivos, era a lei do mais forte que imperava. Antes do sacerdote atuar como mediador, uma tribo proclamava guerra a outra tribo para retribuir um crime cometido contra um membro seu. Até se chegar ao processo houve a justiça privada e a mediação. Foram séculos de desenvolvimento das Civilizações até que se construísse o Direito Processual tal como o conhecemos (ou como não o conhecemos).
Qualquer lição básica de Teoria Geral do Processo deve admitir que sem um Estado-Juiz atuante haverá a barbárie, o estado de natureza hobbesiano, a luta de todos contra todos, enfim, o império do mal. Jamais ouvi alguém dizer que os processualistas estariam a defender justiçamentos só por constatarem que a vida em sociedade precisa de mecanismos de imposição da Justiça, de pacificação social, de estabilização de conflitos.
O que Rachel Sheherazade disse - mesmo que podendo eventualmente fazê-lo de maneira mais clara - foi expressar o que o Direito Processual já diz há muito tempo, e sem alarde: que os homens precisam de um terceiro que ponha um fim aos conflitos sociais. Caso contrário, haverá o caos.