quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Série vocacionados – II (Moisés)*

Prosseguindo com a série vocacionados, chegamos a Moisés, o legislador, profeta e líder de Israel na caminhada de 40 anos pelo deserto, saindo do Egito rumo a Canaã, a Terra da Promissão.
Como fizemos com Davi, quero selecionar algumas passagens da vida de Moisés especialmente quando à sua chamada à missão que Deus lhe entregaria. Vejamos:
(1)Moisés teve seu nascimento e sobrevivência assegurados por Deus. As parteiras hebreias deveriam, segundo a ordem de Faraó, matar as crianças do sexo masculino. Como as parteiras não o fizeram, sob o argumento de que as mulheres hebreias davam à luz antes que elas chegassem para fazer o parto, Faraó ordenou que os meninos fossem lançados no rio. Mas o menino Moisés, por ser bonito, foi escondido por três meses e depois colocado num cesto no rio, com sua irmã Miriã observando o que lhe aconteceria. Por providência divina, a criança foi adotada pela filha de Faraó e ainda teve o privilégio de ser amamentado e educado pela sua própria mãe, Joquebede, que recebia um salário para isso. Não poderia ser melhor. Uma série de providências de Deus marca o nascimento e a infância de Moisés, cujo nome (egípcio) significa “tirando”, numa alusão ao fato de ter sido retirado das águas;
(2)Estêvão nos informa que Moisés foi “instruído em toda a ciência dos egípcios e era poderoso em suas palavras e obras” (At 7.22). Considerando que o Egito era o Império dominante do mundo de então, podemos imaginar qual o nível de formação a que Moisés foi submetido, incluindo artes militares. Embora haja a ideia de que Moisés era gago, porque mais tarde ele diz ser “pesado de língua”, não consigo imaginar uma pessoa gaga e ao mesmo tempo poderosa em palavras. Uma coisa não combina com a outra. O que entendemos do discurso de Estêvão é que Moisés foi educado conforme a instrução normal que os egípcios concediam a seus nobres, pois, afinal, ele era filho adotivo da filha de Faraó;
(3)Moisés recebeu dois tipos de formação: como egípcio e como hebreu. Sua formação egípcia lhe deu conhecimento, domínio de artes bélicas, habilidade para legislar – vale dizer que as regras da Lei de Moisés não são em tudo originais. Apesar de ter sido inspirado pelo Espírito Santo (II Pe 1.20,21) – e eu creio nisso – Moisés usou seus conhecimentos de direito, e isso é bastante claro quando vemos a adoção de costumes de outros povos e normas de direito civil, penal, agrário, ambiental, processual, humanitário, ainda que elementares em sua técnica, conceitos e principiologia, se comparadas com as normas contemporâneas. O outro tipo de formação se deu na tenra infância, quando Moisés foi formado em seu caráter. Não sou dado a especulações, não gosto de dar azo à minha pobre imaginação, mas posso sugerir com alguma probabilidade que sua mãe lhe dizia: “Filho, você não é egípcio. Você é descendente de Abraão, Isaque e Jacó. Não cremos nos deuses do Egito. Cremos no Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Nossa terra não é aqui”;
(4)Certo dia, querendo visitar seus irmãos hebreus, Moisés, homem maduro, com 40 anos de idade, deparou com a tortura infligida por um egípcio contra um escravo hebreu. Irado, Moisés matou o egípcio e o enterrou. Havia nele um sentimento de justiça, uma indignação, mas o exercício arbitrário das próprias razões, como dizem os advogados, foi uma atitude indevida;
(5)Estêvão diz ainda em seu discurso aos judeus que Moisés imaginou que seus irmãos hebreus entenderiam que ele foi chamado a libertá-los. Sendo assim, com 40 anos de idade Moisés já sabia que tinha sido chamado para libertar o povo hebreu. Não havia muita clareza na vocação, mas ele sabia que fora chamado;
(6)Ao tentar apartar uma briga entre hebreus, Moisés ouviu a dolorosa pergunta: “Quem te tem posto a ti por maioral e juiz sobre nós?” (Ex 2.14). Sim, Moisés era vocacionado, mas seu chamado não era reconhecido pelos irmãos hebreus. Havia um descompasso entre o que ele pensava de si mesmo e o que efetivamente era. Com a revelação de que o assassinato do egípcio era conhecido, Moisés teve que fugir e com isso se distanciar do centro de poder mundial e de todos os privilégios de filho adotivo da filha do rei;
(7)É preciso esclarecer que, segundo o autor da Epístola aos Hebreus, a fuga de Moisés para o deserto tinha um outro ingrediente: ele não fez caso do Egito, preferindo assumir um outro padrão de vida. A fuga não foi tão-somente por medo da condenação, mas também porque ele tinha certeza de que sua terra não era o Egito. Ele “ficou firme, como vendo o invisível” e não temeu “a ira do rei” (11.27).
(8)A fuga de Moisés para o deserto de Midiã o transforma num pastor do rebanho de um sacerdote que vem a ser o seu sogro. São 40 anos naquela vida simples de pastor, habitando o deserto. Nada de privilégios de nobreza. Nada de proximidade com o centro de poder político. Nada de liderança sobre os hebreus. São 40 anos de simplicidade e anonimato;
(9)Certo dia, sem esperar, Moisés contemplou uma teofania, ou seja, uma manifestação divina, que se consubstanciava numa planta (sarça) imersa em fogo sem se consumir. Mais do que isso: Moisés ouviu uma voz, que lhe deu uma missão: falar com Faraó e avisar que o povo hebreu iria cultuar a Deus no deserto. O homem simples que tinha fugido do Egito havia 40 anos agora estava li enxergando algo sobrenatural, que jamais se repetiu na história;
(10)Moisés relutou muito a acatar o seu chamado. Aliás, isso também fizeram outros personagens bíblicos, como veremos em outras ocasiões. Apelou para uma suposta dificuldade de oratória (“sou pesado de língua”). Por isso dizem que ele era gago, mas não creio. Ele havia sido “poderoso em palavras”, como vimos anteriormente. O que posso sugerir, em meio às evidências, é que as quatro décadas de solidão e anonimato tenham provocado em Moisés algum tipo de depressão, de rebaixamento em sua auto-estima. Um dos sintomas da depressão ou de qualquer transtorno que compromete a auto-imagem é fazer com que a pessoa não se sinta habilitada a falar bem. Aqueles anos de deserto trouxeram medo a Moisés. Mas um homem vocacionado é um homem vocacionado e pronto. De algum modo, ele cumpriria sua missão, mesmo que usando seu irmão Aarão como porta-voz, como acabou acontecendo;
(11)Pode-se afirmar que os 40 anos de Egito e os 40 anos de deserto foram fundamentais para forjar o caráter de Moisés para os derradeiros 40 anos de sua vida, justamente o período crucial;
(12)Desde o enfrentamento de Faraó até os 40 anos no deserto, Moisés cometeu erros e se chateou bastante. Aquele povo não era nada fácil – e tenho receio de quem pensa que a Igreja seja um povo de cerviz menos dura! Apesar de todos os seus erros, ele foi um servo obediente. É claro, eu sei que ele bateu duas vezes na rocha quando deveria apenas falar, e isso o impediu de adentrar à Terra Prometida. Mas foi contado como herói da fé (Hb 11) e tido como grande exemplo de homem de Deus, um profeta que serve como figura para o Profeta Jesus Cristo, alguém que compareceu ao episódio da Transfiguração de Cristo.
Algumas lições podem ser extraídas da história de Moisés:
A vocação divina é algo concebido por Deus e não depende das circunstâncias. Antes, Deus muda as circunstâncias, Ele cria situações favoráveis ao cumprimento de Seus santos e perfeitos desígnios. Livramento da morte, educação conforme os preceitos do Deus dos hebreus, excelente instrução formal, conhecimento íntimo das dificuldades da vida no deserto. Deus não escolhe o homem de acordo com as características deste. Ele cria as características porque já fez a escolha. É Deus Quem chama.
Os sinais da vocação podem ocorrer antes do reconhecimento humano, mesmo que sob uma espessa nuvem de incertezas e crises. O sentimento de indignação com a injustiça pode ser um sinal de liderança, mas precisa ser moldado por Deus (matar o egípcio pode ser um péssimo negócio, embora movido por um precioso sentido de justiça). As provas servem para forjar o caráter.
Ninguém deixa de pecar porque foi vocacionado. Vocação não é glorificação.
Habilidades formais e convicções firmes são importantes, mas um um tempo de solidão e anonimato podem ser necessários. O vocacionado pode ficar deprimido, pode ficar em crise, pode duvidar de si mesmo, pode se sentir “por baixo”. Mas isso faz parte do pacote completo da vocação. Sem determinados conflitos não há preparação genuína. Como diz CHARLES SWINDOLL em sua Série Heróis da Fé, Moisés passou de homem de pele macia e coração duro para um homem de pele dura e coração macio. Não vejo como alguém pode se tornar sensível e maduro sem passar por conflitos e crises. Até para sofrer com o sofrimento dos outros e fornecer alguma ajuda é necessário passar por momentos de deserto!
Creio que podemos aproveitar muito mais da experiência de Moisés. Eu agradeço a Deus por ele ter existido. Um dia nos veremos.

*Fundamentado nos seguintes textos bíblicos, citados em seu contexto imediato: Ex 1-6; At 7.14-44; Hb 11.23-29. Usei a Almeida, Revista e Corrigida.

Um comentário:

João Armando disse...

Há algum tempo ouvi um comentário sobre o episódio de Moisés matando o egípcio. Provavelmente (e faz sentido) o hebreu que lhe disse "queres matar-me como fizeste ao egípcio" foi precisamente o mesmo que foi protegido por Moisés. Ali ele já tinha uma ideia de como era o povo hebreu, ou melhor,de como é a natureza humana. De fato a igreja visível do NT não difere muito, em termos de dureza de coração, da igreja do VT.
Na vida de Moisés impressiona muito o Salmo 90, escrito no final de sua vida. Fala da ira de Deus, do temor de Deus - aliás temas muito impopulares no evangelicalismo moderno...) e termina pedindo a Deus que confirme as obras dele. Nada de soberba, de direitos, de exigências ou reivindicações. Que lição para nós!



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Em um só Deus e na Trindade.
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Na concepção virginal de Jesus, em sua morte vicária e expiatória, em sua ressurreição corporal e sua ascensão aos céus.
Na pecaminosidade do homem, e que somente o arrependimento e a fé na obra expiatória e redentora de Jesus Cristo é que pode salvá-lo.
Na necessidade absoluta do novo nascimento pela fé em Cristo e pelo poder atuante do Espírito Santo e da Palavra de Deus, para tornar o homem digno do Reino dos Céus.
No perdão dos pecados, na salvação presente e perfeita e na eterna justificação da alma recebidos gratuitamente de Deus pela fé no sacrifício efetuado por Jesus Cristo em nosso favor.
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