Imagine uma igreja em que os crentes são divididos em categorias. Eles não se dividem por questões de cor, classe social ou conhecimento intelectual, o que já seria um apartheid. Mas eles se dividem por uma questão carismática: quem fala em línguas estranhas e quem não fala em línguas estranhas - o que também é um apartheid.
Nessa igreja imaginária, o dom de línguas tem especial importância, sendo elevado acima do dom de profecia, que edifica a todos. A seu turno, o dom de línguas praticado sem interpretação edifica somente o que fala. É uma edificação individual. Por isso, aí está a contradição: o menor de todos os dons é enaltecido como se fora o maior.
Imagine que nessa igreja os irmãos tenham todos os dons do Espírito, mas se ocupem principalmente em buscar o dom de línguas. Nos cultos, esses irmãos falam em línguas desconhecidas, todos a um só tempo, sem que ninguém entenda absolutamente nada. Mas, quem se importa? Desde que todos sejam usados pelo Espírito Santo, está tudo bem.
Nada de interpretação de línguas, nada de profecia, nada de curas, nada de palavra do conhecimento, nada de palavra da sabedoria, nada de fé, nada de maravilhas, nada de discernimento de espíritos. Ah, o discernimento de espíritos é tão importante, e tão raro! Seria ele o termômetro da igreja no exercício dos dons. Mas, à sua falta, a febre das línguas estranhas campeia e adoece a igreja, pois, ausente a profecia, "o povo se corrompe" (Pv 29.18).
Não, as línguas não são ruins em si mesmas, elas são um dom de Deus. Só que, concedidos a nós, os dons precisam ser exercitados com sabedoria. O que deveria ser fervor passa a ser febre. Crentes febris são crentes adoecidos.
Consegue imaginar essa igreja? Tamanho é o emocionalismo que se distorcem pontos doutrinários: em vez de dom, as línguas passam a ser sinal maior de plenitude do Espírito, em detrimento de outros dons e do fruto do Espírito. Falou em línguas, é porque ficou cheio do Espírito. Falou em 1982, e nunca mais, já se considera que foi cheio, e com isso tem o requisito principal para o episcopado e o diaconato, ainda que nunca mais fale em línguas e - pior do que isso - ainda que lhe faltem outros requisitos, como a aptidão mínima para o ensino. Tem outros dons, ensina com maestria, profetiza, cura enfermos, evangeliza, pastoreia, mas nunca falou em línguas - esse, então, é um crente espiritual, mas não tem a conditio sine qua non, e, por isso, não pode ser diácono, não pode ser presbítero, não pode ser pastor - é, em suma, membro de uma subcategoria de crentes.
Alguém dirá: "como falar em línguas?" Os doutos dessa igreja responderão: "Peça a Deus, busque com fé, ore, faça jejuns, nunca desanime". Esquecem que os dons são distribuídos pelo Espírito Santo como Ele quer. E que Paulo nos exorta a buscar os melhores dons, não os menores. A plenitude do Espírito não pode ser medida, e, se o fosse, não seria medida pelo menor de todos os dons.
Mais do que isso: a se estabelecer coisas que o crente deve fazer para falar em línguas, o que se estabelece é um critério de divisão antibíblico dentro da igreja, pois está comprovado pela experiência que nem todos os que buscam falam em línguas. Sendo assim, lhes faltaria alguma coisa: talvez fé, talvez oração, talvez perseverança, talvez emoção suficiente para ir além de uma razão doutrinária.
E agora, consegue imaginar uma igreja assim? Ela existiu, ou pelo menos existiu com a essência do que foi descrito acima: a Igreja de Corinto. Se quiser conhecer esse tema com um pouco de imparcialidade, leia I Co 12-14.
Um comentário:
Faltou dizer que nem todas as "línguas" são línguas bona fide. Que muitos buscam e terminam por "falar" seguindo o manual de instruções - ore, busque, depois abra a boca e fale o que vier... o Espírito não abrirá a boca por você, você é que tem de falar etc. Aí o sujeito fala mesmo - os mesmos sons, as mesmas palavras... Passa até a haver um sotaque, se é que possamos dizer assim. Digo tudo isso porque eu mesmo já fiz isso (envergonho-me de o reconhecer, mas fiz). Falei. Na verdade, fui sincero - fui? Nem sei. Falei, quis acreditar que falei, disse aos irmãos que falei, todos se alegraram e pronto. Bem, continuei a falar - mas chegou um tempo em que tive de me deparar com os fatos - se aquela experiência foi real, não me fez bem algum. Não resolveu problemas sérios emocionais que tinha na época, não me tornou um evangelista, continuei com as mesmas dificuldades no evangelismo. Descobri que o que REALMENTE funciona é o bom e antigo estudo regular e sistemático da Palavra. Isso sim, posso testemunhar, mudou radicalmente a minha vida. Não estou dizendo que não creio no dom. Mas digo, por ter vivido a experiência, e por ter convivido com irmãos sinceros mas que labutavam no mesmo erro que eu, que muita falação em línguas é só forçação de barra... Não digo tudo isto, repito, para esfregar na cara de ninguém, para humilhar ou desprezar ninguém. Digo-o porque passei por isso. Havia muito desejo de me identificar com os irmãos e com a igreja. Hoje vejo isso claramente.
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