Em Mt 2.1-12, lemos a respeito da procura de sábios do Oriente pelo menino que viria a ser o Rei dos judeus. Examinemos, primeiro, o texto:
"1 Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, em dias do rei Herodes, eis que vieram uns magos do Oriente a Jerusalém. 2 E perguntavam: Onde está o recém-nascido Rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos para adorá-lo. 3 Tendo ouvido isso, alarmou-se o rei Herodes, e, com ele, toda a Jerusalém; 4 então, convocando todos os principais sacerdotes e escribas do povo, indagava deles onde o Cristo deveria nascer. 5 Em Belém da Judéia, responderam eles, porque assim está escrito por intermédio do profeta: 6 E tu, Belém, terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as principais de Judá; porque de ti sairá o Guia que há de apascentar a meu povo, Israel. 7 Com isto, Herodes, tendo chamado secretamente os magos, inquiriu deles com precisão quanto ao tempo em que a estrela aparecera. 8 E, enviando-os a Belém, disse-lhes: Ide informar-vos cuidadosamente a respeito do menino; e, quando o tiverdes encontrado, avisai-me, para eu também ir adorá-lo. 9 ¶ Depois de ouvirem o rei, partiram; e eis que a estrela que viram no Oriente os precedia, até que, chegando, parou sobre onde estava o menino. 10 E, vendo eles a estrela, alegraram-se com grande e intenso júbilo. 11 Entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra. 12 Sendo por divina advertência prevenidos em sonho para não voltarem à presença de Herodes, regressaram por outro caminho a sua terra".
Esse episódio se passou nos tempos do rei Herodes, o Grande (73 a 4 a.C.), que reinou de 37 até sua morte. Era um homem sanguinário e ambicioso, que mandava matar filhos, esposa, inimigos, tudo por causa de sua sede de poder. Idumeu, não tinha, portanto, ascendência judaica, nem cultivava a fé dos judeus. Era um político da pior espécie, capaz de construir coisas magníficas para obter o favor do povo, mas também de passar por cima de seus adversários.
Ocorreu, no entanto, que esse Herodes foi contemporâneo de um dos maiores e mais importantes eventos da História humana, a saber, o nascimento do Salvador, o Rei dos judeus, conforme predição das Escrituras. Naquela época, difundira-se o dogma teológico de que o Messias libertaria Israel do domínio político, que então era representado pelo Império Romano, e, na Palestina, pelo rei Herodes. Em sua interpretação das Escrituras, os judeus esperavam um Messias político, um libertador nacional. Essa era a ideia amplamente aceita e ensinada pelos líderes judeus. A esperança escatológica confundia-se com as aspirações temporais, num típico exemplo de eisegese, que difere da exegese*.
Diferentemente de Herodes, uns magos ou sábios do Oriente creram na predição a respeito do Messias. De alguma forma que não sabemos explicar, Deus falou com aqueles homens por meio dos conhecimentos astrológicos (ou astronômicos?) que eles possuíam. O fato de serem chamados de "magos" não significa que fossem adivinhos ou feiticeiros, pois na Antiguidade, por não haver clara distinção entre os ramos do conhecimento, as ciências eram confundidas com a Religião. Vemos o mesmo fenômeno em Êxodo e em Daniel.
O certo é que aqueles sábios não eram judeus, mas gentios. E que foram guiados por uma estrela para terem contato com o recém-nascido Rei dos judeus, isso por uma providência divina.
Embora a tradição católica afirme que eram três "reis-magos" (Belchior, Gaspar e Baltazar), a Bíblia não diz que eram reis nem que eram três. Apenas os presentes oferecidos ao menino eram três: ouro, incenso e mirra. Mas isso não induz necessariamente à dedução de que eram três pessoas. Nota-se, aliás, que sua chegada chamou não só a atenção de Herodes, mas de toda a cidade de Jerusalém. Certamente não foram escondidos nem buscando anonimato. Sua aparição foi facilmente percebida.
Observe-se que já nesse episódio Deus mostrava Seu interesse pelas nações, de um modo geral. Não só os judeus seriam salvos, mas todos quantos buscassem o Rei dos judeus.
Com efeito, o que procuravam aqueles homens vindos de fora? Buscavam adorar ao Rei dos judeus. Isso preocupou Herodes, que, mesmo sem fé, indagou aos escribas e principais sacerdotes onde deveria nascer "o Cristo".
É curioso que um incrédulo como Herodes ainda parasse para investigar nas Escrituras uma informação na qual pudesse acreditar. Se ele não tinha parte com a Palavra de Deus, por que, então, lhe dava crédito a fim de tomar providências? Isso é para mim um desafio, que a princípio somente pode ser explicado pela cegueira imposta ao rei pelo desejo de se manter no poder. Ou, em meio à sua incredulidade, Herodes poderia imaginar que, levados pela fé nas Escrituras, os judeus um dia fariam do menino o seu Rei, indepentemente do poder e dos desígnios de Deus.
Diante da informação de que o Cristo nasceria em Belém de Judá, conforme Mq 5.2, Herodes convocou os sábios e, cinicamente, lhes pediu que o mantivessem informado para que ele mesmo pudesse adorar o Cristo! Antes, os inquiriu sobre o tempo preciso em que lhes aparecera a estrela. De fato, Herodes não queria perder a oportunidade de impedir a ascensão do Rei dos judeus.
O próprio Herodes enviou os sábios a Belém, e foram eles guiados pela estrela até o lugar onde a família de Jesus se encontrava. Ali visitaram o menino e deixaram seus presentes. Houve grande alegria.
Advertidos por Deus, em sonho, os sábios não retornaram a Herodes, mas seguiram para sua terra por outro caminho.
Sendo assim, seja por meio de uma estrela, seja por meio de um sonho, Deus falou com aqueles homens de fora, gentios, estrangeiros para os quais o Messias nasceu. E, conquanto tivesse contato com a História e com o povo de Deus, Herodes, o Grande, se mantinha incrédulo, impassível, inerte, frio. Que mistério esse da fé!
Cremos num Deus que fala aos homens (Hb 1.1-3), que procura adoradores (Jo 4.23,24), que deseja que todos se salvem. Esse é o Deus que ainda hoje fala e procura adoradores, o Deus que deseja que todos se salvem, e que a todo instante manifesta a Sua Palavra e a Sua Providência em todo o mundo e de diversas formas.
Herodes não deu crédito às profecias? Não foi por defeito da Palavra. Os estrangeiros creram. Deus sabe de todas as coisas. Ninguém jamais poderá perscrutar o coração humano e saber como se processa a fé.
*Na exegese, o intérprete retira do texto aplicações possíveis. Na eisegese, ocorre o inverso: o intérprete tenta inserir no texto ideias pré-concebidas.
Nota: A ilustração é de GUSTAVE DORÉ. Segue a apresentação dele:
"O artista francês Gustave Doré (1832-1883) produziu centenas de ilustrações de qualidade sobre histórias bíblicas em sua vida. Essas ilustrações eram usadas nas Bíblias em muitos idiomas na Europa do século 19 e depois nas Américas. Muitos mestres produziram obras artísticas como essas para ilustrar temas bíblicos, e Doré estava entre os mais famosos deles.
O estilo realista de Doré deu nova vida a essas histórias reais. Séculos de mosaicos, frescos e relevos em pedra, com sua iconografia precisa, juntamente com impressões em blocos de madeira (lembrando das auréolas sempre presentes em alguns objetos em particular) caricaturaram muitas histórias da Bíblia nas mentes dos crentes. Entretanto, os locais e pessoas retratadas por ele parecem reais. O trabalho de Gustave Doré (e sua licenciosidade artística) foram criticados por alguns em seus dias, mas essas ilustrações resistem ao tempo como boas representações físicas de eventos bíblicos importantes" (http://www.creationism.org/images/DoreBibleIllus/dore_pt.htm).
2 comentários:
Quem cunhou esse neologismo "eisegese"? Não existe no dicionário! É só ironia sua, ou existe mesmo?
João, existe sim a palavra "eisegese".
Definição: "O erro de ler-se um texto atribuindo-lhe significado em vez de tirar o significado dele (usado de modo pejorativo; o oposto de exegese)".
DEMOSS, MATHEW. DICIONÁRIO GRAMATICAL DO GREGO DO NOVO TESTAMENTO. EDIÇÃO DE BOLSO. SÃO PAULO: VIDA, 2007, 189P.
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