sexta-feira, 9 de abril de 2010

Análise crítica do livro "A religião mais negra do Brasil"

Acabo de ler o livro A religião mais negra do Brasil, de Marco Davi de Oliveira (São Paulo: Mundo Cristão, 2004, 127p.). Trata-se de um ensaio que tenta explicar por que motivo a maioria dos negros brasileiros que buscam uma religião aderem ao Pentecostalismo.
O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Batista do Sul do Brasil (Rio de Janeiro/RJ); pastor da área de missões urbanas numa igreja batista na Vila Mariana, em São Paulo; fundador e presidente da organização não-governamental Simeão, o Níger; e coordenador do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas. É, portanto, um militante do movimento negro.
O livro debruça-se em dados do censo do IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Diz que mais de oito milhões de negros estão entre os pentecostais, sendo que os evangélicos são, ao todo, mais de 26 milhões. Procura, então, quebrar o mito de que as religiões afrobrasileiras são as mais negras de todas, e trabalha para oferecer a resposta para isso.
Devo dizer, com todo o respeito, que o livro incorre em muitos equívocos no que toca ao Pentecostalismo e ao problema racial.
Quanto ao Pentecostalismo, o autor demonstra não conhecer a doutrina pentecostal clássica, ao afirmar que "Os pentecostais acreditam que o batismo com o Espírito Santo é uma espécie de prêmio concedido às pessoas que alcançam um nível de santificação e obediência a Deus mais elevado" (p. 23). Nenhum pentecostal sério afirma uma coisa dessas!
O batismo com o Espírito Santo é revestimento de poder (Lc 24.49 e At 1.8), ferramenta para o trabalho de evangelização, e não tem que ver propriamente com o caráter, senão na exata medida da necessidade de que a pessoa seja nascida de novo.
Com efeito, na seara dos dons do Espírito - relacionada ao batismo com fogo - estamos falando de carisma. Na seara do fruto do Espírito, estamos falando de caráter.
Se há no conceito do autor uma referência ao Movimento de Santidade, do Séc. XIX, nem caberia em seu ensaio, que estuda o Pentecostalismo histórico brasileiro e sua relação com os negros. O pentecostalismo brasileiro não adveio diretamente do Movimento de Santidade, mas daquele fenômeno da Rua Azusa, em Los Angeles, como ele mesmo afirma depois.
Marco Davi de Oliveira tenta explicar a predominância do Pentecostalismo entre os negros brasileiros com certas "reminiscências", que seriam o uso espontâneo do corpo, a musicalidade e a reverência aos mortos, como se os negros houvessem se identificado com os pentecostais por causa desses traços. Todavia, os pioneiros pentecostais no Brasil, que eram europeus, não trouxeram o uso do corpo, a musicalidade nem a reverência aos mortos - a musicalidade é cultural do Brasil, o uso do corpo é, na verdade, decorrência da manifestação do Espírito e da informalidade, e essa reverência aos mortos consiste numa ilação sem fundamento, pois qualquer grupo social ou religioso tem memória de seus fundadores ou personagens principais, assim como de eventuais livros de referência. Nada disso pode ser comparado, nem de longe, com o que os adeptos do Candomblé e da Umbanda fazem em seus ritos de incorporação de espíritos - o autor não o afirma expressamente, mas essa é a ideia implícita.
O autor diz que nós pentecostais demonizamos os cultos afrobrasileiros, mas não é verdade. Nós não inventamos o que acontece ali. Diz também que entre os pentecostais haveria certo "branqueamento" consistente na busca de casamentos entre brancos e negros. Supõe, como se fosse dado concreto, que nem todos os casamentos entre os pentecostais se dão por amor verdadeiro. Em sua concepção, negro deveria casar com negro, e branco, com branco, como forma de afirmação da raça.
Há profundo sentimento racialista e divisionista nas palavras do autor. Ele entende a sociedade brasileira como racialmente estratificada. Vê na raça negra um elemento cultural até mesmo inconsciente, como se o fato de a pessoa descender de negros fizesse com que a África não saísse dela, fosse algo incrustado em suas veias, mesmo sendo ele agora um cidadão brasileiro. Sendo assim, que cultura devem ter os meus filhos: dos portugueses que foram para o Piauí, dos índios, dos negros ou dos japoneses que entraram para a sua árvore genealógica? Sendo eles descendentes de todo esse agrupamento de etnias, que identidade eles têm? E mais: é preciso ter uma "identidade racial"? Por quê?
Fui lendo e me assustando a cada capítulo. Não acreditava que um teólogo poderia ter uma visão tão racialista da sociedade, das relações sociais e eclesiásticas. Ao dizer, por exemplo, que os pentecostais têm muitos negros mas não os colocam em posições de destaque, esquece, só para citar um exemplo retumbante, que um dos principais pastores da Assembleia de Deus há cinco décadas é negro, o Pr. Anselmo Silvestre, líder da denominação em Minas Gerais, e que acaba de passar o comando daquela igreja para seu filho, estando já com quase cem anos de idade. Não há esse apartheid que o autor denuncia com ênfase.
O autor defende as "ações afirmativas", crendo que as igrejas evangélicas deveriam lutar por elas e dar o exemplo, começando por suas próprias instituições, como os seminários. Em vez de primar pelo mérito, iríamos ter professores de teologia conforme a cor da pele ou a declaração pessoal de raça.
Vejo esse livro como produto do esquerdismo teológico a que se refere o Rev. Augustus Nicodemus Lopes em seu livro - por vezes citado aqui - O que estão fazendo com a Igreja?, publicado, aliás, pela mesma editora. Mistura luta de classes com teologia, tentando fazer uma teologia negra, mas sem o necessário substrato teórico. Provoca, com isso, confusão teológica, e consegue prejudicar o conhecimento de dois mundos: o pentecostal e negro.
Há, é claro, a confusão, própria da esquerda, entre preconceito racial e exclusão social. Ninguém dirá, em pleno domínio da razão, que não existe preconceito racial no Brasil (temos as piadas de mau gosto a demonstrar esse pecado) - mas daí a sustentar que os negros sejam excluídos da ascensão social por motivo de cor da pele é um terrível engano. Não é assim. Não existe uma luta de raças no Brasil, uma composição das elites brancas contra os herdeiros da escravidão.
Compreendo que os pentecostais sejam tão receptivos aos negros por vários motivos: se Jesus veio dar oportunidade de Salvação aos pobres (Is 61.1,2; Lc 4.18,19), e se muitos pobres são negros, logo, muitos negros serão alcançados por Jesus. É verdade que os pentecostais são espontâneos e mais simples em sua liturgia que os históricos, mas a questão é, de novo, social, e não racial: é mais fácil um pobre se sentir bem num ambiente informal do que num lugar mais sofisticado, ainda que as pessoas sejam gentis e simpáticas.
Além desse aspecto social e relacional, há o poder de Deus. Não se pode negar que o poder de Deus impulsionou o crescimento pentecostal no Brasil. Foi pela força do Espírito Santo, por meio do batismo com fogo, que o evangelho foi pregado em todo o país, a ricos e pobres, em favelas e palacetes. Não se pode espiritualizar tudo, mas também não se pode enxergar as coisas exclusivamente pela ótica das ciências humanas. Aliás, o que muitos ideólogos esquerdistas chamam de ciências humanas não passa de supostas teorizações de suas opiniões pessoais. Cria-se a ideia e se coloca um ar de cientificidade. Mas o método científico, quando aplicado com precisão, revela o vício existente.
Não quero essa nação dividida que o movimento negro propõe, com suas cotas raciais e o ensino de que  o negro precisa necessariamente se identificar com a cultura africana só porque descende de negros. E também não quero uma igreja dividida em raças.
Não existem raças. Quem inventou a raça foram os racistas. O que existe é a Humanidade. Será que ainda não aprendemos isso? Os clássicos e repisados exemplos da África do Sul, da Alemanha e do Sul dos Estados Unidos não serviram?
Escrevo este texto para reflexão e debate, sabendo que, assim como eu, o Pr. Marco Davi de Oliveira deve estar querendo o melhor para a Causa de Cristo.

6 comentários:

João Armando disse...

Não li o livro, e, francamente, não o lerei, acreditando que há assuntos mais interesantes e mais urgentes do que o tema do Pr.Marco Davi - principalmente depois de ler sua avaliação no blog... Parece mesmo ser exemplo clássico de esquerdismo evangélico que só quer ver tudo pela ótica da luta de classes e da sociologia. Com respeito à sua crítica, eu me daria o direito de discordar em dois pontos: O primeiro é quando você corretamente disse que o batismo com / no Espírito não é ensinado como sendo um prêmio no meio pentecostal. No entanto, uma coisa é o ensino oficial, outra é a crença real do povo - e, em minhas conversas, na minha experiência, tenho que concordar com o autor - muitos pentecostais falam como se fosse mesmo algo meritório, e penso que possam até existir igrejas que ensinam, oficialmente, assim. É só lembrar a exigência da "espera", que é preciso esperar (baseiam-se em Atos 1.4). Enfim, o autor talvez se referisse à crença "de fato" e não à doutrina "de direito", talvez se referisse à realidade que se vê e ouve, não à que se ensina. Como você disse, nenhum pentecostal "sério" ensinaria isso, mas há outros que não são sérios e outros que podem até ser sérios mas mal ensinados. O outro ponto é quanto à demonização das religiões afrobrasileiras. Se entendi seu texto, você quis dizer que os pentecostais apenas constatam o fato que há demônios lá - e não só os pentecostais, mas qualquer evangélico que acredite na Bíblia. Temos o direito de pensar o que quisermos dos outros - aliás, todos têm o direito de pensar livremente, principalmente em matéria de fé. Talvez o autor do livro quisesse dizer que os pentecostais "expressam mais claramente" essa crença (que eu compartilho), enquanto que os históricos seriam mais políticos, vamos dizer assim, e os liberais (que sequer acreditam em demônios ou mesmo na Bíblia) claro que não. Como disse, não li o livro dele nem pretendo, mas talvez seja por aí.

logosmarcelo disse...

Sua analise mostra total desconhecimento sobre questões raciais no Brasil e de dentro da própria instituição Evangélica.

Alex Esteves da Rocha Sousa disse...

logosmarcelo,

Desculpe, mas sua crítica é bastante superficial. Por que eu demonstro total desconhecimento do tema? Se você não usar argumentos, pensarei que apenas ficou descontente com a minha discordância em relação ao autor do livro. É necessário argumentar, e não simplesmente adjetivar e tentar desacreditar o interlocutor.
Alex.

Maryzandra disse...

Olá, por parte gostei de sua análise, no entanto, o texto age como se houvesse a tal utópica democracia racial.
Existe sim um apartheid velado, e sobre o pq que temos que ter uma identidade racial, seria só pq nos impõe uma identidade eurocêntrica há anos, só por isso né.
E ai quando tentamos ressaltar e nos identificar com nossa descendência africana, somos errados, se continuássemos aceitando essa identidade europeia será que você questionaria??

Anônimo disse...

Alex Esteves, gostaria que você lesse livros que discutem sobre a identidade cultural do negro, sobretudo no Brasil, para que antes de duvidar a existência de divisão racial, na qual as pessoas com aparência européia tenham vantagem em detrimento das outras que preservam um perfil africano, não haveria tanto branqueamento de nossos afrodescendentes. Antes das mulheres e agora de homens também, quando alisam os cabelos para que sejam aceitos na sociedade que aceita só brancos ou travestidos de brancos. Infelizmente existe uma divisão racial com uma linha tênue, a qual limita os comportamentos e modifica a identidade cultural, que por sua vez é implicada na formação racial e social. A tua fala é alienadora ou alienada, a qual demonstra um aparente conforto, quando as pessoas que sofrem preconceito aceitem esse fato, a partir das palavras de Jesus Cristo, que afirmou a salvação dos excluídos e como os negros são excluídos, logo serão salvos. Hipocrisia você sabe que Cristo tinha uma fala de crítica social e que não deveríamos esperar e aceitar tudo pacificamente, mas de mudar essa cruel realidade a partir do amor. "Amai o teu próximo com a ti mesmo" ,se eu amo o meu próximo como a mim mesmo, logo não o discriminarei. Você tem conhecimento teológico e filosófico, não os utilize para promoção de alienação, mas de igualdade. Faça o que Jesus nos ensinou: "Amai o teu próximo com a ti mesmo".

daladier.blogspot.com disse...

Quando nem se falava em racismo, a IEADPE já tinha um presidente assembleiano negro, o Pr. José Leôncio, considerado, amado e respeitado. Nossa COMADALPE, quase no mesmo período, tinha um vice-presidente negro, o Pr. José Gomes, igualmente querido, amado e respeitado. Isso sem falar nos inúmeros líderes negros que temos. Portanto, nas ADs os negros convivem com todas as outras raças abrigadas neste imenso Brasil, sem discriminação! Somente delinquentes intelectuais disseminam esta pilantragem.

Abração!



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