O atilado comentário do amigo João Armando ao meu texto "Um exemplo de misticismo em nosso meio" me fez pensar em algumas passagens de minha vida, que aproveitarei para tecer considerações sobre o trabalho de pessoas não ordenadas.
Antes, porém, preciso ressaltar que o amigo João Armando menciona em seu comentário o fato de haver hoje igrejas que, embora reconheçam o sacerdócio universal dos crentes, separam alguns ofícios exclusivamente a pessoas especialmente ordenadas, quando estas deveriam se ater às funções básicas de supervisão e ensino.
De fato, de modo geral, ressalvadas as distinções entre as organizações eclesiásticas, ordenam-se pastores (e às vezes presbíteros, "evangelistas", bispos) para os ofícios de celebrar Ceia, batizar, fazer casamentos e dirigir cultos fúnebres. A rigor, só os "ministros da Palavra" podem realizar esses atos.
Confesso que essa questão não tem tomado meus pensamentos, conquanto eu seja bastante preocupado com certos problemas de teologia pastoral (poimênica) e hiperetologia (teologia do serviço, do ministério eclesiástico). Todavia, as palavras de João Armando me fizeram pensar no quanto esse tema é profundo.
Com efeito, não há nas Sagradas Escrituras nenhuma determinação de atribuições pastorais ou episcopais que vão além do ensino e da supervisão. O bispo ou pastor precisa estar apto para o ensino, precisa cuidar das ovelhas. Não há nada ali que determine aos pastores e assemelhados a exclusividade do ofício da Ceia e do batismo nas águas - as únicas ordenanças bíblicas. A Ceia do SENHOR era uma festa (ágape), com um sentido de fraternidade, memória da morte de Cristo e anúncio de Sua Vinda (esses quesitos são recordados por Paulo em I Co 11.23-34).
Além disso, não há determinação para que pastores celebrem casamentos. Isso é talvez resquício do romanismo, em que há sete sacramentos, sendo um deles o matrimônio, oficiado pelo padre - sem o qual o casamento não serve. Nem por isso deixaremos de casar na igreja, mas é importante distinguirmos os mandamentos bíblicos das tradições humanas.
Semelhantemente, os ofícios fúnebres sequer são mencionados na Bíblia.
Em que pese ao meu entendimento de que cerimônias de casamento e funerais sejam tradições humanas, penso que no caso do batismo e da Ceia a questão deva ser aprofundada, já que se trata, aí sim, de ordenanças. Bem por isso, em última análise, deveriam ser abertos a pessoas não ordenadas, já que Filipe, um diácono com dom de evangelista, batizou um eunuco (At 8.26-40; ver também Ef 4.11), e as Ceias, enquanto celebrações festivas, eram realizadas coletivamente, sem essa formalidade clerical que temos. Na realidade, a ordem para que esperemos uns pelos outros reflete essa espontaneidade do ato.
Se por um lado é necessária alguma organização, alguma institucionalização, isso não deve burocratizar a igreja, criando coisas como "para evangelizar no domingo à tarde, fale com o setor de evangelismo". Impessoalidade não combina com o Evangelho, algo essencialmente pessoal.
Nessa esteira, discordo, com todo o respeito, daquele costume de dividir crentes em leigos e minitros do Evangelho. A palavra "leigos" denota um sentido de "não-qualificado para as coisas sagradas", e me parece também um fruto do romanismo. Se tudo em Deus é santo, por que laicato e sacerdócio? Todos os crentes em Cristo são sacerdotes d'Ele (I Pe 2.9).
Mas o nosso ritualismo e formalismo institucional não é imbatível. Sei de pelo menos um caso em que uma igreja muito preocupada com essas coisas permitiu que sua missionária inserida em campo distante celebrasse um ato exclusivo a homens - porque ali somente homens podiam ser pastores (esse é outro tema, sobre o qual me reservo o direito de tratar em ocasião diversa).
Eu mesmo passei por situações curiosas. Em 2002, meu pastor, em Sete Lagoas-MG, me pediu, por telefone, para dar posse a um cooperador que iria ser o suplente do dirigente numa pequena congregação na cidade. O detalhe é que eu não era, como ainda não sou, ordenado a nenhum ofício eclesiástico. Portanto, estava como que transferindo um poder que não tinha.
Mais à frente, ainda em Sete Lagoas-MG, no ano de 2006, numa congregação em que eu dava estudos frequentes, o presbítero dirigente me pediu, de improviso, para celebrar a Ceia (!). Não só ele poderia realizar o ato como tenho certeza de que atrás de mim havia pelo menos mais um presbítero como o dirigente. E a Ceia foi celebrada por mim.
Um comentário:
Passei uns dias sem comentar nada no blog pois estive de férias no litoral pernambucano e alagoano... Sem internet! Na verdade, poderia ter procurado uma lan house, mas optei por me desligar do mundo!
Ainda sobre os supostos "atos pastorais" - você acertou no ponto ao comentar sobre o casamento ser um sacramento católico. Em Roma, quem não se casa com um sacerdote romano está em pecado de adultério (e, como se sabe, os adúlteros não herdarão o Reino...) Já nós, retivemos só o batismo e a ceia, que são as duas únicas ordenanças ensinadas na bíblia - mas retivemos também um pouco, que seja, do "poder sacramental". Repare - no romanismo, a salvação está amarrada à igreja-instituição (romana) e, mais especificamente, aos sacramentos. Sem a eucaristia, sem o batismo etc. o católico não pode ter esperança de salvação - e os sacramentos, claro, só são ministrados pelo clero romano. O próprio Bento XVI o disse com a maior (perdoe o termo) cara de pau - que as "comunidades irmãs", isto é, os grupos cristãos fora de Roma - não as chama de igrejas, claro - não têm sacramentos verdadeiros, só eles, romanistas. A Reforma destituiu o altar nos templos, substituindo-o pelo púlpito. Dessa forma, restaurou a pregação da Palavra ao seu devido lugar. Infelizmente, porém, retivemos o "poder das chaves" (no mau sentido) ao deixar ou pretender que só o suposto clero possa ministrar a ceia e o batismo. A questão me parece resumir-se a isso - PODER. Não que todos os que defendam isso sejam arrogantes ou centralizadores, mas a origem parece mesmo ter sido essa. Repito - creio que todos os candidatos ao batismo deveriam passar pelo crivo da liderança da igreja (pastor e presbíteros), não me parece que qualquer um possa sair por aí "casando e batizando". Deveriam ser questionados sobre a validade de sua fé etc. Mas, uma vez aprovados, uma vez constadada a veracidade de sua fé, por que não permitir a qualquer irmão ou irmã que ministrasse o batismo - até mesmo a própria pessoa que pregou, que orou, que jejuou, que visitou, que chorou, enfim, que semeou com lágrimas aquela alma?
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