Foi publicado um livro com o título "Why a saint?" ("Por que um santo?"), escrito por Slawomir Oder, monsenhor polonês que trabalha no processo de canonização de Karol Wojtyla, o falecido Papa João Paulo II. De acordo com esse religioso, o pontífice tinha o costume de praticar ascetismo e autoflagelação, para o que usava um cinto como açoite. Também chegava a dormir no chão como penitência, depois do que desarrumava a cama para que seus assessores não o percebessem.
A prática da autoflagelação teria o objetivo de mortificar o corpo para obtenção da santidade, e, conforme matéria no "site" de notícias da Globo (G1), alguns "santos" católicos faziam isso, dentre eles Francisco de Assis, Catarina de Siena e Inácio de Loyola.
Aparentemente, o Sr. Oder busca comprovar a santidade de João Paulo II com o fato de ele ter tentado se aproximar do sofrimento de Cristo.
Com todo o respeito à religião alheia - pois meu interesse é teológico -, não há fundamento bíblico para isso.
De fato, a Bíblia condena o ascetismo. É o que está escrito em Cl 2.20-3.10:
"Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais às ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade. Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus. Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra; porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória. Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria; por estas coisas é que vem a ira de Deus [sobre os filhos da desobediência]. Ora, nessas mesmas coisas andastes vós também, noutro tempo, quando vivíeis nelas. Agora, porém, despojai-vos, igualmente, de tudo isto: ira, indignação, maldade, maledicência, linguagem obscena do vosso falar. Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos e vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou".
A mortificação da carne ou dos membros significa o processo de santificação, que só pode ser alcançado com a justificação, pela qual o Homem faz as pazes com Deus e é por Ele aceito, mediante a Obra de Cristo (Rm 5.1,2). É o afastamento do pecado deliberado, a busca processual de uma vida mais pura, sempre em decorrência da ação do Espírito (I Pe 1.2). Se for mero rigor ascético, não passa de religiosidade fria. Isso os fariseus e escribas faziam com muito zelo, mas Jesus não os aprovou (Mt 23 e Mc 7.1-23).
Está escrito em Rm 8.13: "Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte; mas, se, pelo Espírito, mortificardes os feitos do corpo, certamente, vivereis". Sendo assim, a mortificação da carne se faz pela ação do Espírito, e não com a ajuda de instrumentos de tortura.
Há uma diferença entre carne e carne na Bíblia, indicada por duas palavras gregas: soma e sarx. A palavra "carne", quando traduzindo a palavra "soma", indica o corpo humano. Quando traduz a palavra "sarx", se refere à natureza humana decaída. Então, devemos mortificar a carne enquanto natureza decaída, não a carne enquanto corpo. Aliás, Paulo pressupõe o devido cuidado com o corpo (Ef 5.29), o qual foi criado por Deus e é muito bom (Gn 1.31).
Para ser santo basta ser separado do pecado mediante "o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo" (Tt 3.5). É a Palavra de Deus que nos santifica (Jo 17.17). Todos os eleitos de Deus são chamados para a santificação e são considerados santos (Rm 1.7; I Co 1.2; II Co 1.2; Ef 1.1; Fp 1.1; Cl 1.1; Ef 6.18; I Pe 1.2, 16; 3.5), não precisam ser canonizados nem praticar a autoflagelação, tampouco o ascetismo. Somente Deus é Santo em Si mesmo, tendo a Santidade como uma de Suas atribuições morais intrínsecas e imutáves (Is 6.3).
Quando, em I Co 9.27, Paulo diz que esmurra o seu corpo e o reduz à escravidão, ele não está aprovando o autoflagelo, o que seria contraditório, pelo que vimos em Colossenses. No contexto, Paulo está se referindo ao seu trabalho de evangelização, e que se pauta pela extrema seriedade em tudo o que faz, como os atletas, figura que ele utiliza porque os esportistas seguem regimes e regras muito rígidas, tendo em vista o prêmio a alcançar (I Co 9.24-27). É uma questão de figura de linguagem, metáfora!
Mas, por que um texto desse teor num blog dedicado a temas evangélicos? Estaria eu preocupado com a espiritualidade do Papa? Daria eu algum crédito a intenções de canonização? Não é isso. Nem reconheço a Igreja Católica como Igreja, com todo o respeito - bem, Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI) reconheceu que a Igreja Católica é a única Igreja Cristã, então estamos conversados...
O fato é que me preocupo principalmente com cristãos evangélicos que praticam atos de ascetismo para obter bênçãos ou a própria santificação - orações prolongadas, jejuns, vigílias. Há o perigo de mudarmos o real significado dessas práticas, que deveriam ser de comunhão com Deus, para um tipo de barganha espiritual, como se algum de nós pudesse "pagar um preço" - detesto essa expressão. Quem pagou todo o preço foi Jesus na Cruz do Calvário. Esquecer desse ponto fundamental da Fé é um erro crasso.
Nota: pesquisei a notícia em http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1463832-5602,00-PAPA+JOAO+PAULO+II+SE+FLAGELAVA+COM+FREQUENCIA+DIZ+LIVRO+DE+MONSENHOR.html
http://noticias.r7.com/internacional/noticias/papa-joao-paulo-2-se-flagelava-e-fez-carta-de-renuncia-20100126.html
Um comentário:
Não me surpreenderia se os neopentecostais passassem também a ensinar essas novidades. Já assimilaram tando, já beberam a fartar da fonte romana, é de se surpreender que nenhum "apóstolo" ou "apóstola" não saiu ainda por aí dizendo que precisamos nos autoflagelar! Você acertou em cheio - santos são todos os eleitos de Deus. Sem santidade / santificação, ninguém verá a Deus. Não são santos aqueles que o Papa considera como tais, mas aqueles a quem DEUS chama e santifica. Ele é o Senhor que nos santifica, aleluia! Essa é a nossa esperança.
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