Deixamos a seção das Cartas às sete igrejas (capítulos 2 e 3) e nos dirigimos agora à seção dos capítulos 4 e 5, destinados à visão do trono de Deus e do Livro selado com sete selos. Começamos a enfrentar textos que demandam cada vez mais atenção, dada a natureza metafórica da linguagem, que não dispensa um estudo do significado histórico de figuras empregadas pelo apóstolo.
"Depois destas coisas", quer dizer, depois de ter contemplado a visão de Jesus glorificado, João olha uma porta aberta no céu, e ouve a primeira voz que ouvira antes, "como de trombeta" (1.10). Registre-se que o "depois destas coisas" não se segue à escrita das Cartas, porque estas certamente foram redigidas depois das visões, como introdução ao Livro de Apocalipse. O "depois" refere-se à visão de Jesus glorificado, como descrito em 1.12-16, e ao que Jesus lhe disse em 1.11,17-20.
No mesmo sentido do que dissera em 1.1,19, João diz que Jesus lhe mostrou "o que deve acontecer depois destas coisas" (v.1). Então, ocorreu assim: primeiro Jesus disse: "Escreve, pois, as coisas que viste, e as que são, e as que hão de acontecer depois destas" (1.19). Logo em seguida, tendo explicado o mistério das sete estrelas e sete igrejas (1.20), Jesus disse: "Sobe para aqui, e te mostrarei o que deve acontecer depois destas coisas" (4.1).
"Imediatamente", João achou-se "em espírito". Ele teve um arrebatamento de sentidos, uma experiência espiritual, conforme já relatara antes (1.10). A visão lhe foi dada enquanto estava em espírito, mas a inspiração para escrever o Livro é outra coisa: ao escrever inspirado pelo Espírito Santo, João registrou a visão a partir de coisas familiares, que pudessem comunicar o que vira, como as pedras preciosas e o mar de vidro.
Note-se o uso das expressões "semelhante, no aspecto" (vv. 3,4); "um como que mar de vidro, semelhante ao cristal" (v.6). Essas foram maneiras que o apóstolo João usou para descrever o que viu, pois se tratava de algo incomum, celestial, glorioso.
Nosso cérebro trabalha com associações. Quando vemos alguma coisa diferente, jamais vista, logo procuramos um jeito de associar aquilo a um referencial conhecido. Assim também ocorreu com João. Aliás, o sobrenatural na Bíblia sempre é descrito a partir do natural - fogo para o Espírito Santo (v.g., línguas repartidas "como de fogo" em At 2.3).
Há, porém, que se fazer uma distinção: uma coisa é a associação que João faz em termos de aspecto do que viu; outra coisa é a visão realmente parecer com isto ou aquilo. Embora sutil, a distinção é importante.
Vejamos: para descrever o Ser que se achava sentado no trono, João apelou para as pedras de jaspe e sardônio, e, quanto ao arco-íris em volta do trono, disse que se assemelha a esmeralda. Ele disse literalmente que o "que se acha assentado no trono é semelhante, no aspecto, a pedra de jaspe e sardônio, e, ao redor do trono, há um arco-íris semelhante, no aspecto, a esmeralda" (v.3); também disse que "há diante do trono um como que mar de vidro, semelhante ao cristal" (v.6). Essas comparações partem do apóstolo por associação, pois ele mesmo usa expressões que denotam isso.
Quanto a outros elementos da visão, o texto dá a entender que foram descritos por João na exata medida em que foram vistos.
O próprio arco-íris ao redor do trono (v.3); os 24 anciãos sentados em volta do trono e com coroas de ouro (v.4); os relâmpagos, vozes e trovões diante do trono (v.5); as sete tochas de fogo, "que são os sete Espíritos de Deus" (v.5; cf. 1.4; 3.1); os "quatro seres viventes" no meio do trono e ao redor do trono, "cheios de olhos por diante e por detrás" (v. 6).
Conquanto saibamos que esta é uma visão do trono de Deus e que no seu entorno não existem animais, homens de idade coroados nem fenômenos da natureza, admitimos aqui que se trata de elementos próprios da visão, e não da associação feita pelo apóstolo. Isso se coaduna com o método de só ver no texto o que ele diz, sem alegorias nem injunções pessoais.
O que nos interessa é achar caminhos para compreender o que tudo isso disse a João e a seus contemporâneos. Num segundo plano, o que tudo isso diz a nós hoje.
Aquele que está assentado no trono é Deus Pai. O arco-íris, os relâmpagos, trovões e vozes dão a idéia de Seu poder e glória, assim como o trono indica a Sua majestade. Lembremos que, ao presenciar os trovões, relâmpagos e o clangor da trombeta quando Yahwéh falava como Moisés no monte Sinai, que fumegava, o povo ficou de longe, com medo (Ex 20.18-21; Dt 5.22,23). Enquanto Moisés, na condição de mediador, falava com Yahwéh "à nuvem escura", o povo estremecia de pavor, dizendo "não fale Deus conosco, para que não morramos".
Eu destaquei a expressão "Deus conosco" porque é o mesmo que Emanuel (hebraico). Não por acaso, Jesus Cristo recebeu o nome de Emanuel (Mt 1.23). Enquanto Moisés era simplesmente um mediador, Jesus Cristo é Mediador (I Tm 2.5), mas é igualmente Deus entre nós.
O aspecto de Deus Pai é maravilhoso, indescritível com palavras humanas. A visão foi explicada pelo auxílio de pedras como sardônio e jaspe.
Além do mais, não se trata de João ter visto a Deus pessoalmente, mas de um vislumbre de Seu poder, glória e majestade. Ninguém pode ver a Deus face a face. "Ninguém jamais viu a Deus", escreveu o próprio João (I Jo 4.12). Séculos antes disso, Jacó disse ter visto a Deus "face a face" (Gn 32.30), mas o que ocorreu ali foi a luta com um anjo, depois do vau de Jaboque.
Quanto a Moisés, é certo que ele mantinha intimidade com Yahwéh, a ponto de conversar com Ele "cara a cara", mas isso também não nos autoriza a dizer que ele viu de fato a Deus, pois João diz categoricamente que ninguém jamais O viu. Precisamos entender o sentido das expressões. No caso de Moisés, e de alguns mais de seus contemporâneos, o que houve foram teofanias. No entanto, precisamos explicar isso.
Primeiro, sabemos que Moisés falava ao SENHOR "face a face, como qualquer fala a seu amigo" (Ex 33.11; cf. Ex 3.2-6; Dt 34.10).
Em Ex 24.1-11, temos o relato de quando Moisés, Arão, Nadabe, Abiú e 70 anciãos de Israel sobem o monte Sinai para a Aliança com Yahwéh. Somente Moisés poderia chegar ao SENHOR, os demais ficariam adorando de longe. De madrugada, Moisés se levantou, ergueu um altar ao pé do monte com 12 colunas, "segundo as doze tribos de Israel" (v.4), e enviou uns jovens para oferecerem holocaustos e sacrifícios pacíficos de novilhos.
Mais à frente, diz um trecho: "E viram o Deus de Israel, sob cujos pés havia uma como pavimentação de pedra de safira, que se parecia com o céu na sua claridade. Ele não estendeu a mão sobre os escolhidos dos filhos de Israel; porém eles viram a Deus, e comeram, e beberam" (vv.10,11). Enquanto João empregou sardônio, jaspe e esmeralda, Moisés escreve acerca de "uma como pavimentação de pedra de safira" que estaria sob os pés de Deus, e que se parecia com o céu na sua claridade.
Não consigo deixar de perceber uma semelhança entre as visões do grupo de Moisés e a de João. Mas temos ainda Ezequiel.
Ora, em Ez 1.26-28, lemos que o profeta viu "algo semelhante a um trono, como uma safira". Sobre "esta espécie de trono" estava sentada "uma figura semelhante a um homem" (v.26). O que mais o profeta viu? "Vi-a como metal brilhante, como fogo ao redor dela, desde os seus lombos e daí para cima; e desde os seus lombos e daí para baixo, vi-a como fogo e um resplendor ao redor dela" (v.27).
Há mais: "Como o aspecto do arco que aparece na nuvem em dia de chuva, assim era o resplendor em redor. Esta era a aparência da glória do SENHOR; vendo isto, caí com o rosto em terra e ouvi a voz de quem falava" (v.28).
O mesmo arco-íris visto por João fora contemplado séculos antes por Ezequiel. Se João descreveu a glória divina com sardônio e jaspe, Ezequiel a descreveu genericamente como "metal brilhante". Ambos viram fogo: João viu sete tochas de fogo; Ezequiel viu fogo ao redor do trono, e na própria figura nele assentada.
Os quatro seres viventes ao redor do trono e no meio dele fazem recordar Ez 1.4-25...
João viu quatro seres cheios de olhos, no meio do trono e ao redor dele: o primeiro semelhante a leão; o segundo, a novilho; o terceiro tinha o rosto de homem; e o quarto parecia uma águia voando. Esses seres tinham seis asas cada um, e não cessavam de dizer, dia e noite: "Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, que é e que há de vir" (v.8). Estamos diante de um culto no Céu.
Agora vem um momento especial, porque João se refere a algo que irá acontecer. Vejamos: "Quando esses seres viventes derem glória, honra e ações de graças ao que se encontra sentado no trono, ao que vive pelos séculos dos séculos, os vinte e quatro anciãos prostrar-se-ão diante daquele que se encontra sentado no trono, adorarão o que vive pelos séculos dos séculos e depositarão as suas coroas diante do trono, proclamando: Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a glória, a honra e o poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas" (vv. 9-11).
Os quatro seres viventes e os 24 anciãos estão cultuando a Deus Pai. Os números 4 e 24 podem nos dizer alguma coisa dentro da numerologia judaica. Mas, antes disso, vejamos Ez 1.4-25.
Em suas "visões de Deus", tendo diante de si os céus abertos (Ez 1.1), Ezequiel viu um vento tempestuoso, uma grande nuvem, "com fogo a revolver-se, e resplendor ao redor dela", e viu no meio disso "uma coisa como metal brilhante, que saía do meio do fogo" (v. 4).
O profeta viu ainda que do meio dessa nuvem saía:
"(...) a semelhança de quatro seres viventes, cuja aparência era esta: tinham a semelhança de homem. Cada um tinha quatro rostos, como também quatro asas. As suas pernas eram direitas, a planta de cujos pés era como a de um bezerro e luzia como o brilho de um bronze polido. Debaixo das asas tinham mãos de homem, aos quatro lados; assim todos os quatro tinham rostos e asas. Estas se uniam uma à outra; não se viravam quando iam; cada qual andava para a sua frente. A forma de seus rostos era como o de homem; à direita, os quatro tinham rosto de leão; à esquerda, rosto de boi; e também rosto de águia, todos os quatro. Assim eram os seus rostos. Suas asas se abriam em cima; cada ser tinha duas asas, unidas cada uma à do outro; outras duas cobriam o corpo delas. Cada qual andava para a sua frente; para onde o espírito havia de ir, iam; não se viravam quando iam. O aspecto dos seres viventes era como carvão em brasa, à semelhança de tochas; o fogo corria resplandecente por entre os seres, e dele saíam relâmpagos, os seres viventes ziquezagueavam à semelhança de relâmpagos" (5-14; grifei).
O profeta ainda descreve, de modo difícil de entender, o aspecto de quatro rodas brilhantes, uma dentro da outra, que se movimentavam em quatro direções, conforme o espírito dos quatro seres, que nelas estava (Ez 1.15-25). Certamente nem Ezequiel compreendeu isso. Limitou-se a descrever.
"Sobre a cabeça dos seres viventes havia algo semelhante ao firmamento, como cristal brilhante que metia medo, estendido por sobre a sua cabeça" (Ez 1.22). João, por sua vez, disse que viu um como que mar de vidro, semelhante a cristal (Ap 4.6).
O importante aqui é que o relato de João é muito parecido com o de Ezequiel: quatro seres alados com rostos de leão, boi ou novilho, homem e águia; alusões a fogo, resplendor, brilho, cristal, arco-íris, trono com alguém sentado.
Em suma: eles viram a glória de Deus.
Prosseguiremos depois.
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