Em 1954, Paul W. Anderson (1926-1986) publicou uma obra de ficção científica chamada Sam Hall, em que órgãos governamentais elaboram e disseminam dossiês com informações destalhadas sobre cidadãos*.
Em 2006, o então ministro da Fazenda Antonio Palocci foi acusado de mandar o presidente da Caixa Econômica Federal violar o sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, a fim de conseguir alguma coisa contra o rapaz, que servia de testemunha num caso de corrupção iniciado em Ribeirão Preto-SP e que aportou em Brasília-DF. Devido à invasão, descobriu-se algo muito pessoal relacionado ao pai biológico de Francenildo, algo que ninguém mais precisaria saber.
Agora em 2008, investiga-se, para desagrado do presidente Lula e de seu governo, se a ministra Dilma Rousseff e alguém sob suas ordens criaram, dentro da Casa Civil, um dossiê com informações sigilosas sobre gastos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sua esposa e mais algumas pessoas. Depois de algum tumulto, o governo determinou a investigação de quem vazou o dossiê, como se a extração e manipulação de dados sigilosos para fins extra-oficiais não fosse crime.
Andando pelas ruas, somos filmados por câmeras de fiscalização de trânsito, câmeras de segurança de estabelecimentos comerciais, e não sabemos se o Google Earth não está registrando nossas imagens captadas via satélite. Aliás, li em algum lugar que satélites estão flagrando imagens de nudez por aí, cenas da intimidade de pessoas anônimas, e de maneira inadvertida.
Daqui a pouco, estaremos num grande filme. Todos nós seremos personagens de um espetáculo universal de cinema ao vivo. Espere aí: isso já não acontece?
Tenho receio do Estado que tudo vê. Hoje é um caseiro cujo pai biológico vem à tona por causa de uma quebra de sigilo bancário; é um documento repleto de dados sobre pessoas que ocuparam cargos importantes na República. Mas, você já parou para pensar que existem inúmeros bancos de dados em que nossas informações vivem armazenadas, seja em papel, seja virtualmente?
Os bancos contém dados sobre nós, a Receita Federal faz seu mapeamento minucioso, e nós mesmos inserimos dados via internet. Nomes e números, senhas, códigos e perfis. Somos personagens gravados em algum registro informatizado por esse mundo.
Com o caso Isabella Nardoni, a Imprensa não só conta todos os dias sobre testemunhas, laudos e suspeitos, como vasculha informações pessoais, profissionais e familiares dos envolvidos. Sabemos que Alexandre Nardoni tinha um carro e uma motocicleta quando estudante de Direito; que foi reprovado três vezes no exame da OAB; que se apresenta como consultor jurídico, mas que na verdade estagia no escritório do pai; e que seu apartamento foi um presente do pai - eu questiono se essas notícias precisavam ter sido publicadas. Aliás, isso é notícia?
Acho muito curioso a Imprensa dar tantas informações sobre um caso penal e logo em seguida dizer que o inquérito está sob segredo de Justiça. Não há contradição nisso?
Tenho receio do que ocorrerá daqui a poucos anos em termos de violação de privacidade, de intimidade e de sigilo: o Estado manuseando dossiês, a Imprensa perscrutando lares, todo mundo sendo visto por olhos às vezes malignos, e nós sem sabermos se não existe uma câmera escondida na janela daquele prédio abandonado.
Mais do que isso: pode ser que no futuro poucas pessoas dentro de um governo manipulem registros sigilosos sobre você, sem vazamento e com muito cuidado, de modo que você seja conduzido, sem saber, a fazer aquilo que o governo quer que seja feito. Por isso, creio que o vazamento de um dossiê sempre é um mal menor que o próprio dossiê.
*Informações colhidas no artigo Utopia e ficção científica: a "geografia real" e os futuros (im)prováveis, de autoria de Marcos Lobato Martins, na Revista Leituras da História, Ano I, nº 6, Editora Escala, pp.20-27.
Nenhum comentário:
Postar um comentário